domingo, 16 de maio de 2010

O engano antropológico e o senso comum da REVISTA VEJA



Quando me perguntam se sou filho de Barra do Corda, muitas vezes não sei o que responder, sou maranhense ou amazonense?
Quando comecei a perceber o mundo, morava no centro de Barra do Corda, “nas Pedrinhas”, tinha medo do Cabeça de Cuia e nossa casa vivia cheia de “índios”, notava que meu pai “desaparecia e aparecia a cada 15 dias”, mas não sabia ao certo o por quê!
Quando passei a estudar fora, todos que me perguntavam de onde eu era, respondia que era de Barra do Corda, e as pessoas falavam: “terra de índio”, sempre usando o singular, como se “índio” e índios” fossem a mesma coisa, como se existisse apenas uma etnia em todo o universo de Barra do Corda e mesmo do Brasil.
Intitulei esse pequeno texto dessa forma, porque depois de vários minutos, às vezes horas de conversa com o individuo perguntando se em Barra do Corda existia apenas índio, conseguia explicar que existiam os “canelas” e os “Guajajaras”, e que tais povos eram diferentes e se consideravam diferentes.
Com o passar dos anos e depois que entrei na Universidade, antes mesmo de me formar, tentava explicar para as pessoas que existiam, os Canela-Ramkokamekrá e os Canelas-Apaniekrá, povos distintos, autônomos entre se e com identidades étnicas diferenciadas e especificas. Nesse ponto a conversa complicava ainda mais e o que eu mais estranhava era que, até mesmos pessoas de Barra do Corda não compreendiam tais especificidades étnicas, culturais e de identidade. Comecei a ficar assombrado e cheio de receio em relação a tal situação de (des) conhecimento.
Verifiquei que existiam três etnias na cidade e em seus arredores, os nomes dados a esses indígenas também variavam bastante, percebi que a sociedade civil de Barra do Corda reconhecia tais povos como distintos, mas não sabiam denominar tais etnias, dessa forma falam em “canelas do Ponto”, “canelas dos porquinhos”, Guajajaras. Na Antropologia, os nomes respectivamente seriam: Canela-Ramkokamekrá, Canelas-Apaniekrá e Tentehara-Guajajara.
Nomes difíceis de se falar e mesmo de aprender e os quais a sociedade desta cidade não tem obrigação de saber dos mesmos, a não ser por uma questão de respeito étnico-cultural, fora isso, vai de cada pessoa o que quiser saber. Meu espanto aumentou depois que conheci alguns indígenas que afirmavam ser Krepümkateyë, índios os quais Curt Nimuendajú (1946) relatou da existência dos mesmos em 1929 na região de Grajaú e aqui mesmo em Barra do Corda, o senso comum os conheci por “índios da Geralda Toco Preto”, também são Timbira e falam a mesma língua que ambos os Canelas.
Mudei meu discurso, passei a falar que tínhamos quatro povos indígenas vivendo e convivendo em Barra do Corda. Chegado o ano de 2008, conversando com um amigo da Fundação Nacional do Índio (FUNAI), ele me falou de uns índios que estavam vivendo na TI Rodeador, e que se auto proclamavam Kreyé, povo esse que também foi citado por Nimuendajú (1946), eram conhecidos como Kreyé de Bacabal, moravam em uma localidade chamada Pedra do Sal, devido ao movimento pastoril do inicio do século XX, alguns indivíduos desse grupo se dividiram (comum entre Timbiras) vindo morar na região de Barra do Corda e Grajaú. E haja povos indígenas em Barra do Corda...Novamente uma mudança em minha fala.
No tocante que diz respeito à representatividade desses povos, legitimidade étnica, sentimento de pertencimento e o conceito antropológico que damos aos mesmos em relação ao “ser índio”, todos os povos aqui citados têm suas representações, histórias, mitos, lendas, sentimento de pertencimento e tabus culturais que torna os mesmos indígenas, principalmente os Krepümkateyë e os Kreyé, mais contestados como não índios, mesmos que o senso comum não os considerem assim, existe indivíduos entre esses povos que falam a língua Jê dos seus respectivos dialetos, têm um histórico indígena, conhecem seus mitos e lendas, seus conceitos de indianidade e etnicidade, reivindicam apenas serem reconhecidos como tais e são por grupos separados da sociedade, não por todos, porque em sua grande maioria, para ser índios, o senso comum exige que esses indivíduos andem nus, comam carne crua, morem em ocas e malocas e façam aquele barulhinho que a Xuxa faz em uma de suas lindas músicas e nunca cheguem perto da cidade para nada nesse mundo.
Essa idéia a cima citada não é exclusiva, única e unanime de Barra do Corda, ela também é compartilhada pela revista VEJA (A FARRA DA ANTROPOLOGIA OPORTUNISTA - Edição de Abril, edição 2163 – ano 43 – nº 18 – 05 de maio de 2010), quando a mesma descreve o método que alguns antropólogos estão supostamente aplicando para realizar laudos de reconhecimento de TIs (Terras Indigenas) em varias partes do Brasil. Tal revista generaliza alguns conceitos da Antropologia, descrevendo que para ser reconhecido como índio, basta apenas se auto proclamar como tal: “pelas leis atuais, uma comunidade depende apenas de duas coisas para ser considerada indígena ou quilombola: uma declaração de seus integrantes e um laudo antropológico. A maioria desses laudos é elaborada sem nenhum rigor cientifico e com claro teor ideológico de uma esquerda que ainda insiste em extinguir o capitalismo, imobilizando terras para produção”.
Para um laudo antropológico ser aceito e reconhecido como verdadeiro e cientifico, tal estudo tem que ter provas e se sustentar como tal, acho que a VEJA foi infeliz em fazer tal afirmação porque generalizou todos os laudos e todos os antropólogos, e ajudou a aumentar a “distancia” entre índios e não-índios, mostrou que o senso comum preconceituoso não se situa apenas na sociedade civil, mas também nos formadores de opinião. O que essa revista diria se vissem os índios de Barra do Corda, muitos morando na cidade, outros vestidos, outros pilotando motocicletas, dirigindo carros, etc. ? Ficariam pasmos? Talvez nem reconhecessem os mesmos como índios, seriam apenas índios aculturados, conceito esse abandonado pela Antropologia desde a década de 1960.
Depois de ler essa reportagem comecei a ter outra visão da cidade de Barra do Corda, percebi que “somos” uma comunidade multicultural e mult-étnica, com conceitos estabelecidos parcialmente e em constante mudança, vivemos em um estado de tolerância étnico-cultural e centrada em preceitos (ins)tabelecidos. O povo de Barra do Corda reconhece as diferenças, faz uso das mesmas e se estabelece com sua própria identidade de uma forma que “nós” antropólogos, e historiadores ainda não podemos determinar porque tal processo ainda se encontra em andamento, e em processo histórico-antropológico. Tal estudo não é para mim, ou meus amigos, ou outros cientistas sociais realizarem, mais sim para as futuras gerações estudarem e conceituarem de forma que melhore e estruture nossa forma de convivência e a tolerância e respeito entre os povos.

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