terça-feira, 8 de junho de 2010

Barra do Corda, Nimuendajú e um esboço da fricção interétnica


Curt Unkel Nimuendajú (1883-1945) é considerado um dos “Mestres da Etnologia Brasileira” e também marco histórico do contato interétnico entre os Canelas-Ramkokamekrá e a sociedade envolvente regional brasileira. Nimuendajú nasceu em Jena na Alemanha do final do século XIX. Desembarcou em São Paulo em 1903, como funcionário da firma Zeiss.
Começou seu contato com os índios do Brasil em 1906, entre os Apapokuva-Guarani, seu nome Alemão era Curt Unkel, recebe o nome de “nimuendajú, aquele que fixou morada entre nos”, entre os Apapokuva-Guarani. Viveu em São Paulo até 1913, passando a morar em Belém do Pará, naturalizando-se brasileiro em 1922. Sua formação escolar é algo ainda desconhecida, não tendo formação acadêmica, superior.
Excelente cartógrafo, arqueólogo, e tendo uma compreensão de varias línguas indígenas do Brasil, Nimuendajú conheceu quase todo o território brasileiro em suas pesquisas de campo.
Contribuiu muito com instituições européias e norte-americanas, também trabalhando para o Serviço de Proteção ao Índio (SPI)[1] e contribuindo com o Museu Paraense Emilio Goeldi. Sua pesquisa de campo teve grande destaque entre os índios de língua Jê, povos Timbira, o qual tiveram um papel primordial no trabalho de Curt Nimuendajú.
O seu trabalho que nos servirá como pano de fundo, e ilustração para este artigo, será The Eastern Timbira, 1946, o qual Nimuendajú tem como objeto maior os Ramkokamekrá, ou os chamados “Canelas do Ponto”. Nimuendajú esteve em contato com esse povo entre 1929 a 1936 (Melatti, 1985).
·         Primeira visita: 1929 esteve entre os mesmos pouco mais de um mês;
·         Segunda visita: 1930, este pouco mais de dois meses;
·         Terceira visita: 1931, passou dois meses e meio;
·         Quarta visita: 1933, passou quase três meses;
·         Quinta visita: 1935, passou um pouco mais de dois meses;
·         Sexta visita: 1936, passou dois meses e meio;

Nimuendajú também esteve entre os Canelas Apaniekrá, com segue descrição do próprio abaixo:

"O censo de 1919 estima os apaniecrás em 118 almas; durante minha visita em 1929 eu avaliei o número em algo mais alto, possivelmente 160. Desde então ele obviamente aumentou um pouco. Em 1930 obtive um vocabulário de cento e sessenta e nove palavras" (Melatti, 1985: 31).

Nossa pesquisa de campo para produção de um artigo completo sobre Nimuendajú entre os Canelas transcorreu por mais de seis meses consecutivos, entrevistando pessoas que conviveram, viveram e se relacionaram com esse antropólogo nas décadas de 1920 e 1930 na cidade de Barra do Corda.
A memórias dessas pessoas que participaram dessa pesquisa seja como entrevistados, seja como informante, estabeleceram e determinaram um perfil de Curt Nimuendajú. Nesse perfil, percebemos que a maior contribuição de Nimuendajú entre os Canelas foi principalmente a super-valorização da auto-definição do Ser Canela, valorização das suas tradições, de seu modo de vida e de sua ancestralidade.
Deve ter destaque também à importância de seu trabalho para eles, seus métodos de pesquisa, suas visitas, suas supostas companheiras na “tribo”, a convivência com seus pais adotivos na aldeia, seus trabalhos para o SPI, e a “lenda” que se criou em torno da figura de Nimuendajú e o mito de Awkhê.
Em nossa última visita a campo, estudando a “fricção interétnica” entre Kanela e sertanejos, acabamos nos envolvendo ainda mais com o nome de Curt Nimuendajú, trazido à tona pelos próprios indígenas e incitado por nos durante nossa estadia entre os sertanejos daquela região.
Uma dificuldade há qual encontramos para realizar as entrevistas a respeito de Nimuendajú, foi descobrir quem entre os mesmos havia com vivido, visto, ou observado o “Côhcaipó” (Curt Nimuendajú), como os Ramkokamekrá lhe batizaram, quem poderia relatar as visitas de Nimuendajú entre os “Canelas do Ponto”. Descobrimos três Ramkokamekrá, uma mulher e dois Homens que viveram na época de Nimuendajú.
Não foram somente essas três pessoas que viram e viveram no tempo de Nimuendajú, outros têm sua imagem em suas mentes, lembranças, durante suas infâncias na antiga aldeia do Ponto Velho, ou aldeia do Brejo dos Pombos e dos Bois. Essas eram antigas aldeias Ramkokamekrá, que foram formadas por causa de surtos de catapora, e outras divergências faccionais características dos Timbira.
Em Barra do Corda, os relatos são variados e cheios de controvérsias, principalmente em se tratando de Nimuendajú em uma época em que a disputa de terra era algo que vigorava nesse município. Os Canelas eram considerados, indios que detinham terras demais, diminuindo a velocidade do progresso na região (Depoimento da época feito por um morador de Barra do Corda-JAT).
Seu livro The Eastern Timbira, 1946, mostra um maior envolvimento de Nimuendajú com os Timbira e em especial os Ramkokamekrá, que serviu como base de sustentação para esta grande obra dele. Este envolvimento com o povo pesquisado chegou as vias de três supostos casamentos de Nimuendajú com índias Ramkokamekrá, mostrando sua aceitabilidade por parte da comunidade e do próprio Nimuendajú entre os Ramkokamekrá.
Ele foi o primeiro não-índio a branco a viver entre os Canelas por um longo tempo, não somente visitá-los, estudando os mesmos, se interessando pelos seus modos, costumes e seus rituais, por conhecer o território Ramkokamekrá, defendendo os mesmo daqueles que ali entravam para vender bebidas alcoólicas escancaradamente, no meio no pátio (Ler Cartas do Sertão, 2000).
Neste momento, nasce uma espécie de diferenciação feita pelos Ramkokamekrá que chamo de “tipos de agentes externos” em contato com a sociedade Canela. Havendo “tipos de homens brancos”, como categorias, entre essas diferenciações, temos: 1) o sertanejo, 2) moradores das cidades vizinhas (em Especial Barra do Corda; 3) Moradores das cidades grandes (Pesquisadores brasileiros, estrangeiros e pessoas da Fundação Nacional do Índio (FUNAI) de Brasília.
Essa diferenciação entre alguns tipos, foi estabelecida primeiramente por Curt Nimuendajú, seu aparecimento entre os Canelas, da nome ao que seria “pesquisador”, sertanejo e brancos da cidade.
O relacionamento do etnólogo com os sertanejos era “desconfiável”, segundo os depoimentos recolhidos por nos durante nossa última viagem ao sertão, onde quase sempre negavam a falar dele.    
Nimuendajú passou a proibir a prática da “cachaça” na aldeia, às vezes batendo de frente com grandes fazendeiros da região justamente por esse e outros assuntos. Encontramos histórias contadas pelos sertanejos da região sobre este “Curt”, como é conhecido por uns poucos que ainda falam dele.
Seus métodos eram baseados em um relacionamento que vai desde morar na casa de seus pais adotivos (Observação participativa), até a exigência por parte dos indígenas de um total entrosamento e doação por parte do pesquisador. Os objetos que eram dados por Nimuendajú, até hoje são pedidos por eles na chegada de um pesquisador em uma aldeia Ramkokamekrá.
Os métodos de pesquisa de Nimuendajú entre os Ramkokamekrá são até hoje “colocados” pelos indígenas aos pesquisadores que ali se dirigem, mesmo que seja de forma indireta, os Ramkokamekrá conseguem se colocar de maneira única, colocada primeiramente por Nimuendajú.
Esta compreensão do que seria pesquisa, o interesse de um estrangeiro vindo de longe pela cultura daquele povo, desperto interesse mesmo que pouco não somente entre os índios, mais sim entre os brancos da região e sertanejos dali também. Suas andanças em Barra do Corda com Marcelino Miranda encarregado chefe naquele tempo do SPI e outros, veio a mostrar e a trazer a tona a possibilidade de um Branco viver entre os Ramkokamekrá, idéia esta tida não pelos índios, mais sim pelos próprios empregados do SPI.
Este fato veio a se consolidar com a chegada de Orículo Castelo Branco em 1938 e a criação do posto Indígena Capitão Uirá em 1941 (Oliveira, 2002: 265) na aldeia do Ponto, sendo que os mesmos segundo os relatos recolhidos por nós, estavam divididos em duas aldeias, por causa da catapora, na chegada de Nimuendajú, e em 1936 uniram-se novamente na localidade chamada Brejo da Raposa, para logo depois se mudarem novamente para próximo do riacho Santo Estevão, na aldeia do Ponto.
A ida de brancos para morar entre os Ramkokamekrá, não foi apenas fruto da influência de Nimuendajú, mas não podemos negar que este acontecimento (Nimuendajú) foi um fator acelerador e influente para tal atitude e procedimentos.
Nimuendajú funda um método especifico para se fazer pesquisa entre eles, baseado na exaltação do etnocentrismo encontrado entre os povos Timbira, em saber quem é o verdadeiro povo Timbira, descendentes da “Aldeia Grande” (Mito da Aldeia Grande), o verdadeiro povo de Awkhê, fato este reafirmado pelas mudanças significativas vindas depois da saída do Côhcaipó da aldeia para nunca mais retornar.

Nimuendajú, Awkhê e as formas de relação interétnicas
Essa super valorização da identidade Ramkokamekrá não é algo exclusivo dos mesmos, em muitos povos indígenas encontramos através dos mitos desses, histórias que contam o surgimento daquele povo, no caso Ramkokamekrá, a explicação da situação social em que os mesmos se encontram, porque vivem “daquele jeito” e o “branco vive de outro jeito?”, são perguntas comuns entre os mesmo, demonstram a inquietação dos Ramkokamekrá em mostrarem que são “Canelas, que não são Ramkokamekrá, são Põkrá, são mẽ mõ turê”.
Essa ligação que eles fazem entre “Curt e Awkhê”, não foi estabelecida einda na época de Nimuendajú, é mais recente, surgiu durante o final da primeira metade da década de 60, veio com o Messianismo em 1963, com o boom de que Awkhê ainda estava vivo e tentando falar com seu povo, que ele tanto procurou na época do Côhcaipó

D4) “Awkhê ainda esta vivo, ele vive na Europa, ou é nos Estados Unidos. Ele era quem mandava o ‘curto’ (referência a Nimuendajú), ele vinha pegava os artesanatos nossos e levava para a terra dele, chegava lá Awkhê ficava alegre em vê as coisas do seu Povo, perguntava por todo mundo e então mandava e “Curto” de novo, sempre trazendo dinheiro para nos, só que o branco ficava com quase tudo quando o Kokaipó chegava aqui, até hoje ele manda dinheiro para a gente, só eu os brancos ficam com mais da metade. Um dia ele voltará e vai transformar a gente, vamos viver melhor!”
Aldeia Escalvado-28/02/2004
Entrevistado: J. P. Cahhàl
Por: Jonaton Jr.


Segundo William Crocker, em entrevista ao autor deste artigo, ele não encontrou durante suas pesquisas sobre Nimuendajú e os Canela nos anos de 1957 e 1958, nada sobre esta representação de Nimuendajú ligado a Awkhê em anos passados.
Diferentemente dos povos de língua Tupi, como por exemplo, os Tentehara (Guajajara), os Timbira de língua Jê, são povos que não facilitaram o contato entre eles e os Fazendeiros das invasões pastoris, povos tradicionalmente “guerreiros”, tiveram, depois de forçados, a esconder essas características, mais suas festas mostram bem isso, são verdadeiros treinamentos de guerreiros.
Crocker (1958: 5) se refere a essa característica guerreira dos Canela, percebida também por Nimuendajú (1946:260), através do vocábulo “pep”, das festas do Pepyê e Pepkahak, mostrando que mesmo “o mais velho e melhor informante” foi incapaz de dar qualquer sentido a esta palavra, podemos suspeitar assim de uma negação e vergonha em mostrar para que servia suas festas e rituais, indo de encontro ao que os mesmos pregam de um povo pacifico, “ao contrario dos ‘cristãos’ que estão sempre brigando como cachorro”. Ficando a mostra o porquê de terem desaparecido 10 povos Timbira, sobrevivendo ao contato apenas cinco povos: Ramkokamekrá, Apaniekrá, Krĩkatï, Pukòbye e KrePumkateye (Crocker 1990: 20).
Através de analises como essa de Nimuendajú, trabalhada por Crocker, compreendemos uma das diferenças de contato existente entre povos como os Ramkokamekrá e os Tetehara-Guajajara, a negação desses povos em conviver com os novos moradores do Sertão maranhense é latente e incomoda sua “identidade”.
Nimuendajú percebe esse mal estar entre Ramkokamekrá e sertanejos quando se trata das passagens dos sertanejos pela aldeia do Ponto e a permanência de índios nos povoados próximos. O convívio entre índios e sertanejos antes do período de pesquisa e contato entre os Ramkokamekrá e Nimuendajú, estava pautado segundo alguns relatos, em períodos de êxodo dos índios logo depois do termino do plantio das roças, onde os mesmos iam buscar abrigo entre os brancos para troca sua força de trabalho por alimentos e outros favores.
Essa situação interétnica entre Canelas e Sertanejos muda consideravelmente com a chegada de Nimuendajú, principalmente as relações econômicas e sociais entre sertanejos e Ramkokamekrá. A relação de troca e venda entre índios e sertanejos passa a ser controlada pelos indígenas, anteriormente dominada pelos sertanejos, que agora valorizam cada vez mais seus objetos e artesanatos, que também serviam de utensílios domésticos para os sertanejos.
Essa mudança no relacionamento entre índios, sertanejos e brancos de Barra do Corda, passa transformações ao longo de duas décadas, chegando até os anos 60 onde terá uma mudança brusca ainda maior com o Movimento Messiânico Ramkokamekrá. Essas situações de adoções, períodos de êxodo para trabalhos entre os sertanejos e relação de comércio, sofrem grandes transformações durante o período de isolamento Ramkokamekrá, logo após o Messianismo de 1963.
Nimuendajú, conseguiu realizar transformações conscientemente e inconscientemente, transformações sociais e econômicas para os Canelas, Sertanejos e moradores de Barra do Corda. Ele deixou os Ramkokamekrá pela última vez em 1936, levando consigo a lembrança daquele povo que tanto lhe acolheu. Essa foi à última visita dele entre os Canela.
Para Barra do Corda, fica a representatividade internacional que tal individuo lhe proporcionou, mesmo ele não sendo alguém tão quisto nessa sociedade.

     



[1] Ingressou no SPI em 1922.
foto: Nimuendajú na foto com Canelas Ramkokamekrá, da esquerda para direita, o primeiro sentado.

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