quarta-feira, 16 de junho de 2010

Mitologia Timbira


Uma de minhas pesquisas mais demoradas entre os povos indígenas do Maranhão foi sobre mitologia Jê. Ao longo de mais de sete anos de idas e vindas de minhas pesquisas sempre procurei perceber, colher e registrar o máximo de mitos possíveis dos índios por onde eu passava.
Claro que devido a tal fato e devido minha pesquisa mais prolongada ter sido entre os Ramkokamekrá-Canela, meus maiores troféus (mitos) e minha maior quantidade de mitos recolhidos também é entre esse povo e entre os Apaniekrá-Canela, ambos falantes da língua Jê, do tronco lingüístico Macro-Jê.
Quando cheguei entre os Canelas em 2001, tentei recolher mitos os quais me trouxessem explicações a respeito de como tal povo vivia e como os mesmos se comportavam a partir de seus imaginários mitológicos, suas lendas e conseqüentemente ritos e rituais que embasam  suas formas de vida.
Conversando com meu orientador, expus o que desejava saber e de cara obtive um número aproximado dos “mitos” que os Canelas tinham, que variavam entre 150 a 200 manifestações e relatos mitológicos de tempos ancestrais dos Canelas.
Partindo desse pressuposto, e dessa riqueza de mitos e lendas desses indígenas, estaremos disponibilizando em nosso Blog alguns Mitos recolhidos por nós durante nossa pesquisa de Campo entre os povos Timbira do Maranhão. Tais manifestações mitológicas estarão disponíveis por completa para quem as desejarem, bastando entrar em contato conosco através de nosso email de contato.
Para iniciar estaremos disponibilizando o Mito de Awkhê, um dos meus preferidos devido o mesmo ser o formador do imaginário interétnico entre índios Timbira e Não-índios, o meso foi alvo de estudo em meu trabalho monográfico (2006). O Mito de Awkhê relata a historia de um menino que ainda no ventre de sua mãe Timbira estabelece relações extraordinárias as quais levam a uma desestruturação da sociedade Timbira. Awkhê é expulso daquela sociedade se transformando no primeiro homem “branco”, criando tecnologias como o arco e flecha e a “espingarda”, respectivamente escolhidas pelos índios Timbira e pelos “homens branco”, criando a partir daquele momento a diferenciação tecnológica, interétnicas e cultural entre esses dois povos:

Mito de Awkhê (Versão recolhida em 22/10/2002, Por Jonaton Alves da Silva Jr. Informante Sr. José Pires Canela (Zé Pires), Aldeia Escalvado).

(AB1) Awkhê[1] estava no ventre de sua mãe, quando começou a chamá-la para ir tomar banho[2]. Sua mãe então lhe levou para o brejo para tomar banho, ele então saia de seu ventre como peixe, transformava-se em peixe, tomava banho, andava a vontade até enjoar, depois disso chamava sua mãe para ir embora.
Chega então o tempo de Awkhê nascer, ele nasce sem dor. Sua mãe estava deitada durante a noite, quando percebeu ele já havia nascido. O menino depois que nasceu se transformou em uma grande cobra, sua mãe não acordou, quando ela percebeu se assustou, ela ficou com medo e jogou Awkhê longe, ela estava muito espantada, ele então cai e chora. Sua mãe então pergunta para ele porque ele havia nascido daquela maneira, se perguntando porque seu filho não nasceu normal. Ela então o pega novamente, lavando-lhe com água, amamentou e foi criando o menino.
Quando Awkhê estava na idade de 10 a 12 anos, ele começa a “fazer mal” com seus amigos. Chamava sua mãe para tomar banho, mandando ela chamar seus parentes e seus amigos para irem ao brejo. Foram então para o brejo chamado por Awkhê: “Vamos brincar no brejo!”.
Seus irmãos[3] e parentes iam à frente para esconterem-se dele, ele então corria na frente e achava seus irmãos. Mas ninguém o achava, o menino se escondia por trás dos matos e se transformava em onça, seus irmãos, parentes e amigos procuravam por ele e quando achavam era a onça, ele então “rosnava”, todos se assustavam, sua mãe então reclamava com ele dizendo pra ele não fazer mais aquilo com seus amigos e irmãos, falava que eles tinham medo, ele então se transformava em índio novamente.Depois disso, voltavam a tomar banho, brincavam, os outros meninos então começavam as brincadeiras do “sucurulho”, um pulando na perna do outro. Awkhê então falava para os outros: “Vou me transformar em Sucurulho para pegar vocês!”, ele então se transformava mesmo e pegava na perna dos outros meninos e todos ficavam com muito medo, corriam para o seco[4]. Sua mãe então lhe falou: “Meu filho por que você faz isso com teus irmãos?!”. Awkhê então se transformava em gente novamente, e todos voltavam para casa. Awkhê então cresceu mais um pouco, tinha entre 15 e 18 anos. Seus tios de Awkhê combinaram com seu avos, para matarem ele, todos ficaram certo de que Awkhê deveria morrer, porque se eles deixassem que ele crescesse daquela maneira, poderia fazer coisas ruins com seu povo, chamaram ele para uma caçada, seu avô foi na casa da mãe dele[5]: “Minha sobrinha vou levar teu filho pra uma caçada, a turma[6] combinou-se no meio do Pátio, para ele trazer pelo menos um pedaço de carne pra você!” Awkhê foi com toda a turma para caçada. Quando chegaram debaixo de um Morro muito alto seu avô lhe levou para cima deste morro, subiram os dois, chegando lá ele enganou Awkhê: “Vem meu neto vem vê um negocio lá em baixo!”. Quando foi olhar do que se tratava, foi empurrado, caio, mais antes de chegar no chão ele encostou-se a uma folha de Sambaiba, e se transformou em uma folha seca[7] desta planta caindo bem devagar, ali mesmo se transformou em gente novamente e foi embora para casa de sua mãe. Neste momento, fez com que surgisse uma espécie de cerca de pedra, cercando tudo que estava ao redor de seus tios que ainda permaneciam lá em cima.
Não havia buraco para seus parentes saírem para voltarem para casa. De sua casa ele observava todos de sede e fome, procurando um buraco pra puderem sair, tudo estava cercado de pedra, até quando deu umas 14h00min hora, todos ainda estavam presos com sede e fome, quando a mãe dele pergunta: “Filho, cadê teus parente?”, ele falou: “Não sei, eles ficaram lá, caçando!”.
Ele não conto para sua mãe sobre o ocorrido. De onde ele estava olhou seus tios, e então pensou em fazer um buraco para eles saírem, evitando que eles morressem de sede e fome. Derrubou uma pedra para baixo, só então seus tios acharam o buraco e puderam sair.
Chegando a tarde combinaram novamente em matar Awkhê, só que desta vez era queimado. Awkhê já havia escutado a combinação, já sabia o que iria acontecer, contou então para sua mãe que seus tios agora iriam lhe matar realmente, que eles iriam lhe queimar.
Ninguém havia contado para ele, mas mesmo assim ele já sabia, falou então para sua mãe não chorar, que ele iria voltar a viver quando seus tios o matassem, mandou que sua mãe fosse até o local de suas cinzas e juntasse tudo, tirando algodão para fazer o fio do algodão, coloca em cima, para ele tornar a viver[8].
Ele então pegou urucu passo no corpo, fico todo vermelho para poderem matar ele, sua mãe choro passando urucu em seu filho. Acabaram de pintar levaram ele, já haviam feito fogo por trás da Aldeia, muito fogo, chegaram todos os índios, todos esperando ele.
Quando Awkhê chegou levaram ele para frente onde haviam feito um fogo para todos: “Vai encosta-se ao fogo para si esquentar para matar caça mais rápido!”, enganou ele. Todos se juntaram e empurraram-no para cima do fogo, quando ele caiu dentro do fogo, fizeram mais “coivara” para poder queimar bem.
Eles então se mudaram para outro local com medo dele, só sua mãe fico na aldeia. Ela então foi onde estava a cinza de Awkhê para junta-la com fio de algodão. Quando ela terminou de fazer o que Awkhê havia dito, ela saio atrás dos outros que haviam se mudado. Passaram-se uns dias para ela retornar até o lugar da morte de seu filho.
Quando ela retorna, acha uma casa muito bonita, ele havia voltado a viver novamente, Awkhê ficou na porta esperando sua mãe, mais ela ficou com medo dele, ela então começou a chorar e ele pediu para ela parar de chorar[9].
Deu comida para sua mãe, neste momento, fez a “espingarda” e o arco. Fez a catana, o facão. Fez o arco e outros materiais dos índios. A mãe dele fico sentada numa sombra, ele pegou o arco para atirar nela, testa-lo se era mais rápido do que a espingarda.
Ele então arremessa a fecha, mais antes da fecha chegar até sua mãe, ele há pega. Carregou então a espingarda e mirou para sua mãe, atirando logo depois, o tiro acertou e derrubou sua mãe, ele então disse: “Esse é ligeiro!”, fez sua mãe reviver novo. Os outros índios que haviam se mudado vieram por que a mãe de Awkhê não havia voltado, mandaram então um rapaz para tentar achá-la e explicar o que estava acontecendo.
Já tinha muito gado ao redor da casa de Awkhê, todos para dar para os índios criarem. O rapaz veio viu o gado ficou com medo e volto para conta que tinha visto bichos. Mandaram outro rapaz, este então viu Awkhê vivo, sua mãe sorrindo, viu o gado.
Voltou imediatamente e contou o que viu, que Awkhê havia tornado a viver. Todos concordaram vieram onde ele. Quando chegaram conversaram com Awkhê, neste momento chegaram também os “civilizados”, tinha chegado os “brancos”. Awkhê colocou a espingarda e arco um do lado do outro: “O que vocês vão quere, essa ou essa (espingarda ou arco)? Experimentaram o arco bonito bem feito, “era calado”. Pegaram na espingarda, escutaram estralo e disseram que aquilo matava gente. Os homens perguntaram para as mulheres qual elas queria e elas responderam que queriam a espingarda.
Awkhê pegou e carrego a espingarda e atiro: “POU!” (barulho da espingarda), todo mundo caio no chão rolando, com medo, espanto todos eles. Pegou o arco e jogo: “CHUA!”(barulho do arco), caio lá calado, longe, e todo mundo não sentiu nada, e gostaram do arco. Awkhê disse que tinha oferecido o melhor para eles, mais os mesmos não queriam nada: “vocês viverão todo tempo do mesmo jeito, sem nada, em vez de vocês ficarem com a espingarda. Arco não vai levar vocês pra frente, agora espingarda vai levar, vocês terão mais rendas, agora vão ficar desse jeito sem recursos nenhum!”
Assim ficamos morando dessa maneira!!

Mito de Awkhê
Recolhido por Curt Nimuendajú[10]

Uma rapariga do pátio[11] de nome Ancukwëi estava grávida. Certa vez quando ela, em companhia de muitas outras, estava tomando banho, ouviu de repente o grito do preá. Admirada, ela olhou para todos os lados sem descobrir de onde o grito partira. Logo depois ouviu-o novamente. Voltando para casa com as outras, ela se deitou na cama de varas (jirau) quando o grito se fez ouvir pela terceira vez, reconhecendo ela agora que ele partira do interior do seu próprio corpo. Depois ouviu a criança falar: “Minha Mãe, tu já estás cansada de me carregar?” “Sim, meu filho-respondeu ela-saia!” “Bom-disse a criança-em tal e tal dia eu sairei”. Quando Amcukwëi começou a sentir as dores do parto ela foi só para o mato. Deitando folhas de pati no chão, disse: “Se fores menino eu te matarei, se fores menina eu te criarei”. Então nasceu um menino. Ela cavou um buraco, sepultou-o vivo e voltou para casa. Sua mãe, vendo-a chegar, perguntou pela criança e quando soube o que Amcukwëi havia feito, ralhou com ela: Que tivesse trazido o menino por que ela, avó, o criaria; e quando ela foi lá, desenterrou a criança e depois de lava-lo a trouxe para casa; Amcukwëi não quis dar de mamar, mas a avó o amamentou. Mas o pequeno Auké se levantou e disse para sua mãe: “Então não me queres criar?” Amcukwëi muito assustada respondeu: “Sim, eu te criarei”. Auké cresceu rapidamente. Ele possuía o dom de transformar-se em qualquer animal. Quando tomava banho ele se transformava em peixe, e na roça assustava os seus parentes em forma de onça. Então o irmão do Amcukwëi resolveu mata-lo. Estando o menino sentado no chão, comendo bolo de carne, ele o bateu por traz com o cacete, enterrou-o por trás da casa. Pela manhã seguinte, porem, o menino, cheio de terra, voltou para casa: “Avó-disse ele- por que me matastes?” “Foi teu tio que te matou, porque andas assustando a gente”. “Não-prometeu Auké, - eu não fiz mal a ninguém”. Mais logo depois, brincando com as outras crianças, transformou-se novamente em onça. Então seu tio resolveu desfazer-se dele de outra maneira: chamou-o para ir com ele buscar mel. Eles passaram duas serras. Chegando ao cume da terceira, ele agarrou o menino, atirando-o do abismo. Mas Auké transformou-se em folha seca, desceu vagarosamente em espirais até o chão. Ali ele cuspiu e de repente se ergueram em redor do tio dele rochedos íngremes dos quais esse debalde procurou uma saída. Auké voltou para casa dizendo que seu tio vinha atrás dele. Como depois de cinco dias ele ainda não tivesse voltado, Auké fez desaparecer outra vez os rochedos e então finalmente o tio conseguiu voltar: ele estava quase morto de fome.
Logo, porem, concebeu outro plano para matar Auké: sentando-o numa esteira deu-lhe comida, mas Auké disse que bem sabia o que ia fazer com ele. Depois o tio o derrubou pelas costas com o cacete e lhe queimou o corpo. Todos abandonaram em seguida a aldeia, mudando-se para um lugar longe. Amcukwëi estava chorando, mas sua mãe disse: “Por que estas chorando agora, Tu mesmo não o quisestes matar?”. Algum tempo depois Amcukwëi pediu aos chefes e conselheiros que mandassem buscar a cinza de Auké, e estes mandaram dois homens à aldeia abandonada para ver se ainda a encontravam. Quando os dois chegaram ao lugar, descobriram que Auké se tinha transformado em homem branco: tinha feito uma casa grande e criado negros de âmago preto de certa árvore, cavalos de madeira do bacuri e bois de piquiá. Ele chamou os dois enviados e mostrou-lhes a sua fazenda. Depois mandou chamar Amcukwëi para que morasse com ele.
  
A primeira versão a cima foi retirada de minha monografia, apresentada ao curso de Ciências Sociais na Universidade Federal do Maranhão em 2006, a segunda versão aqui apresentada foi recolhida por Curt Nimuendajú nos anos trinta e nos apresentada por Roberto da Matta no livro Antropologia Estrutural (1973).
Nosso fascínio por esse mito é baseado na exemplificação dada por ele estruturalmente sobre a relação de reciprocidade estabelecida entre “índios e não-índios”, o mesmo também relata sobre a estrutura de organização de parentesco entre os Timbira, em especial entre os Canelas, Awkhê sendo um elemento liminar e agente interno e externo daquela sociedade. Espero que cada um possa aproveitar ao máximo esse mito e veja nela elementos estruturais para suas pesquisas.


[1] Awkhê é o que os autores chamam de herói cultural dos Timbira, sua influencia é mais notada e considerada entre os Canela, como criador da situação social em que índios e brancos se encontram.
[2] A manifestação natural sempre acontece quando a mãe, neste caso, esta sozinha, em contato com a água.
[3] Aqui o informante coloca parentes e irmãos em uma mesma categoria, tipicamente Timbira, onde as primas de quinto graus ainda são chamadas de irmãs.
[4] O estudo dos mitos é algo e extrema importância para se ter uma compreensão dos costumes de um povo. Neste caso, no final das tardes na aldeia Escalvado, podemos ver esta mesma cena em ação, só faltando Awkhê, as brincadeiras são constantes.
[5] Neste momento podemos nos perguntar de quem o informante esta falando, de qual avô. Não seria o Tio o interlocutor da mãe de Awkhê?
[6] “Turma” aqui se refere a partido o qual Awkhê pertencia.
[7] Aqui o informante fala que em vez de cair rápido, por causa da sua forma, cairá bem devagar porque a folha seca  tem outra forma, é mais espessa.
[8] Neste momento do mito, parece que a “ressurreição” de Awkhê na verdade depende de sua mãe.
[9] A influencia de missionários evangélicos entre os Canela, com seu métodos de ensinar a bíblia baseados nos mitos influenciam bastante as versões de mitos Canela, como por exemplo, o mito e Awkhê e o Mito do Sol e da Lua. Neste caso percebemos a semelhança da história de Awkhê com a de Jesus Cristo e Maria.
[10] Este Mito foi recolhido por Curt Nimuendajú durante suas pesquisas entre os “Canelas”, (DaMatta, 1973:20). Sendo que a mesma foi transcrita diretamente por Nimuendajú para o português, num manuscrito inédito do livro sobre os Timbira que se encontra no Museu Nacional.
[11] Vide DaMatta (1973:20).
Foto de William H. Crocker (1970).

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